Revoada na floresta tucana

Opinião
Guaíra, 16 de agosto de 2017 - 09h22

Os tucanos, apontados como os bichos que mais gostam de pousar em cima dos muros, vivem momentos críticos nesse ciclo de turbulências por que passa o país. O partido da social-democracia brasileira, o PSDB, está rachado. A fissura se acentuou por ocasião da votação na Câmara sobre a denúncia feita pelo Procurador Geral da República, encaminhada ao STF, envolvendo o presidente da República. A Câmara acabou rejeitando por 263 votos a autorização pedida pela alta Corte para investigar o presidente, com a bancada tucana dando 22 votos a favor de Temer contra 21.

Um spot publicitário, veiculado esta semana, avisa que o partido, no programa partidário a ser veiculado dia 17 próximo, vai “admitir erros” cometidos no passado. O racha se alarga, eis que parcela dos tucanos não admite a confissão pública que o presidente interino da sigla, senador Tasso Jereissati, endossa. O partido se aproxima da Torre de Babel e uma profusão de vozes e barulhos impacta a unidade partidária, ameaçando a necessária integração de forças, fator absolutamente indispensável para que o PSDB seja forte protagonista no pleito presidencial de 2018.

A crise vivida pelo partido não é coisa recente. Já faz um bom tempo que os tucanos enxergam sua identidade coberta de fumaça, após consideráveis perdas de massa doutrinária. Por ocasião de sua fundação, o PSDB apresentou ao país um denso documento, com a descrição da social-democracia que queria implantar. Ali estavam os fundamentos do Estado do Bem Estar Social (Welfare State), com pontuações agudas sobre o papel do Estado na economia, acumulação de capital e distribuição igualitária de ganhos para a sociedade, crescimento econômico, geração de empregos,  ordem social, liberdades democráticas etc. Apontava sua distinção de partidos liberais, a partir da preocupação com o bem-estar coletivo, e a meta de combate à pobreza e à exclusão social.

Os fundadores do partido em 1988 (Mário Covas, Franco Montoro, Fernando Henrique, José Serra, entre muitos), inspiravam-se na modelagem de forte tradição democrata que se podia ver na Alemanha, Suécia, França, Inglaterra, Holanda e Espanha. Mais adiante,  o país elegeu o sociólogo Fernando Henrique, o schollar do tucanato, elevado ao cargo em virtude do bem-sucedido Plano Real, peça fundamental na arquitetura socioeconômica que resgatou os deteriorados eixos de nossa economia. Mas a social- democracia acabou se transformando em gigantesca encruzilhada em que se encontraram grandes e médios partidos do país: PMDB, PFL/DEM, PT, depois PSB, PDT, PTB e os entes criados nos laboratórios da desideologização, esses que se aglomeram hoje no espaço que se designa de centrão.

O PT, principalmente, saiu da ponta esquerda do arco ideológico para se aproximar do centro, avizinhando-se do PSDB e do próprio PMDB. A descaracterização das siglas jogou-as todas no painel da pasteurização ideológica, sobrando a elas apenas refrãos e slogans, como aquele do PT criando o apartheid social (“Nós e Eles”). Ante a fragmentação doutrinário-ideológica, é possível compreender a crise que hoje afeta o PSDB. Indivíduos e alas a que pertencem tornaram-se mais importantes que a substância programática. Caciques deram e dão o tom dos cantos. Com o desaparecimento de tucanos de boa origem (Covas, Montoro, Teotônio Vilela, Beto Richa), sobrou Fernando Henrique como o ícone e maestro da orquestra. Hoje lhe faltam vontade e tempo para dedicação intensa ao partido.

No comando do tucanato, apareceram Tasso e Aécio, cada qual representando mais espaços geográficos (Sudeste, Nordeste) do que nichos ideológicos. O partido se esgarçou. Tornou-se um ente igual aos outros, cheio de grupos e posições. Esta é sua atual identidade. Há, por exemplo,  uma parcela que defende a retirada dos tucanos do governo Temer e outra que defende sua permanência. Lembre-se que a parceria entre PMDB e PSDB, construída para dar salvaguarda ao governo Temer, foi construída sobre um conjunto de ações e reformas aprovadas por ambos. Ou seja, o atual governo realiza o programa definido por tucanos e peemedebistas. Não haveria razão, portanto, para o PSDB abandonar o navio no meio da travessia. Quem defende a saída o faz por interesses eleitoreiros. Receiam não ganhar votos no pleito de 2018 por conta da impopularidade do presidente.

Cabeças-pretas, jovens deputados, contra cabeças-brancas, parlamentares mais velhos: eis o que virou a social-democracia do tucanato. Ou, em outros termos, pecadores no confessionário contra outros que não admitem pecados. O chefão tucano, Jereissati, quer pedir perdão à sociedade por ter seu PSDB cometido erros, sob a crença de que o reconhecimento público de pecados acabará jorrando votos nas urnas tucanas. Mas há uma turma que não admite ter feito infração. O que a querela poderá causar? Formidável divisão, cujos efeitos recairão sobre o protagonismo partidário. E que tucano poderá ter as asas quebradas? Geraldo Alckmin. O governador de São Paulo praticou um erro crasso: combinar com o líder Ricardo Tripoli o voto contra Michel Temer na Câmara; e, segundo se viu, ainda sugeriu a saída dos tucanos do Ministério.

Quem ganha com essa balbúrdia? O prefeito de São Paulo, João Doria. É o único que simboliza avanços, modernidade, inovação. Trata-se de um perfil que possui condições para adentrar as portas da eleição presidencial de 2018 e ser bem-sucedido. Faz boa administração, é trabalhador, domina bem a expressão, tem imensa capacidade de deslocamento, articula-se bem e poderá ser tanto o candidato do PSDB quanto do PMDB. Ou de outro. As portas de muitos partidos se abrem para ele. João é leal a Alckmin. Claro, até onde a lealdade esbarrar no pragmatismo. Se as circunstâncias políticas e sociais lhe forem favoráveis, ele irá à luta, quer dizer, se o cavalo passar encilhado na frente, não pode deixar de montar. Cavalo encilhado não passa duas vezes no mesmo lugar.

Mais: João Doria lapida sua identidade anti-Lula. Uma alavanca poderosa. Mesmo que Luiz Inácio não seja candidato.


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Gaudêncio Torquato

Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação

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