Após divulgar áudios no WhatsApp contando a situação que enfrenta diariamente no setor de saúde pública e demonstrar o quanto os profissionais da área estão cansados, um servidor público motorista do SAMU de Guaíra recebeu a notificação de sua transferência do setor para o Almoxarifado municipal, com a justificativa de que ele “feriu os encarregados da saúde”.
Inconformado com a situação, já que possui quase 20 anos de experiência na área e foi realocado para um departamento que não condiz com o seu trabalho, ele procurou o Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Guaíra – SindiServ.
Ao Jornal O Guaíra, o motorista contou como aconteceu: “Infelizmente, um dos nossos partiu e acabei postando. Tinha quatro pessoas no zipão [saco utilizado para colocar o cadáver], um da gente! Estamos na calamidade danada. Não me chamaram para conversar, só a servidora A., pessoalmente, disse que eu teria que me apresentar no almoxarifado dizendo ‘feriu a saúde, feriu os encarregados, as pessoas que estão por trás da saúde e, infelizmente, não podemos deixar você no seu serviço’”. Dessa maneira, o funcionário público que possui 14 anos de SAMU, com mais de quatro capacitações na área e quatro anos de ambulância normal, foi encaminhado para a outra pasta.
O áudio
No áudio que supostamente a prefeitura utiliza como justificativa para a transferência, o motorista diz que “é tão complicado, nós ‘tá’ tudo exausto, muita gente pediu conta, eles estão pedindo pelo amor de Deus para não sair, mas não tem condições, você respira aquilo lá 24h”, e que “ainda bem que estavam todos vacinados” senão estariam todos “debaixo da lona”, declarando que não há mais quartos na Santa Casa, “está tudo lotado” e que os motoristas buscam oxigênio quase que diariamente. “Tem dois caras que ficam só por conta de buscar O2, em Barretos e Jaboticabal, no meu plantão eles vão buscar, pega caminhão do DEAGUA para buscar e vem meio caminhão, chega aqui, no outro dia tem que sair de madrugada para buscar de tão feio que está”. O servidor ainda relata que cada “torpedo” de oxigênio dura cerca de seis horas para cada paciente e que o barulho dos equipamentos no hospital é muito alto.
Em outro ponto, ele fala de valores para cada morte em decorrência da doença e a necessidade de uma UTI em Guaíra. “Só Deus, cara, e o dinheiro desse covid aí, ó, é 18 mil reais cada pessoa que morre. País inteiro está assim, não sei, mas tinha que ter mais recurso para nós, principalmente uma UTI aqui. Como funcionário que trabalho há 20 anos aqui na saúde, levo paciente para Ipuã… Você fica com vergonha, o tamanho de Ipuã e a UTI sofisticada que tem dentro de Ipuã.”
Ao final, ele afirma o quanto é desesperador as famílias implorando para que ele transfira os pacientes. “O cara está lá dentro te pedindo socorro: ‘pelo amor de Deus cara, dá um jeito de me transferir’, se você não tiver um psicológico bom, pira.”
Posicionamento do governo
O jornal questionou a prefeitura sobre os motivos da transferência do servidor. Em nota, o governo municipal alega que a decisão foi tomada por conta do estado emocional do trabalhador. “A Administração Pública Municipal e Santa Casa de Misericórdia de Guaíra são muito agradecidas a todos os profissionais de saúde que estão diariamente na linha de frente nesta guerra travada contra o COVID-19 e são nossos verdadeiros heróis. Entendemos e compreendemos todas as dificuldades, cansaço físico e emocional de nossos profissionais de saúde, bem como, o desgaste nessa situação de guerra que enfrentamos, principalmente do limite físico e emocional de nossos heróis. Nesta difícil situação, é importante a observação dos limites de cada profissional, e ainda, conceder aos mesmos um distanciamento quando necessário, principalmente para preservar nossos funcionários.”
A prefeitura aponta que “mesmo em situações difíceis como a que vivemos atualmente com os Sistemas Públicos e Privados de Saúde colapsados, a ética e o sigilo profissional devem ser obrigatoriamente respeitados, uma vez que, o paciente e seus familiares têm o direito constitucional da inviolabilidade de sua privacidade”.
Além disso, o governo nega sobre valores recebidos por mortes em decorrência da covid. “Ademais, é inverídica a informação de que os órgãos públicos, ou quaisquer profissionais médicos, recebem numerário financeiro por óbito, como está sendo propagado em várias mensagens em redes sociais, tais FAKE NEWS são graves e criminosas, pois a rede de saúde pública e privada do Município de Guaíra é composta por profissionais de saúde sérios que exercem a medicina há muitos anos em nossa cidade salvando vidas.”
Ao final, o Executivo diz que não há perseguição. “Desta forma, não existe perseguição a qualquer servidor municipal, mas sim ações de gestão necessárias.”
Posicionamento do Sindicato
O presidente do SindiServ, Rodrigo Borghetti, apresentou posição em defesa do motorista. “Hoje, por volta das 10h o G. me procurou e fui informado por ele que a chefe dele [do setor], por conta desse áudio que ele conta a situação desoladora que está a saúde e um pouco da rotina dos servidores que estão lidando cara a cara com a pandemia, transferiu ele imotivadamente de local de trabalho. Mandou ele se apresentar no almoxarifado. Isso é perseguição, isso, para o sindicato, está evidente o assédio moral, porque qualquer transferência tem que ser motivada, tem que ter motivo. Ele está há tanto tempo no mesmo local, mais de 14 anos, ele fez muitos cursos nessa área, deve ter cinco ou seis cursos, caríssimos. Então, fazer uma pessoa, com uma bagagem de conhecimento que tem, dirigir um caminhão de lixo, só para humilhar o servidor? É assédio moral, perseguição, gera indenização por dano moral que ele está sofrendo e ele tem direito de se expressar, expor a rotina dele, de se indignar com a situação.”
Rodrigo ainda esclarece que a transferência deveria ter sido publicada no Diário Oficial Eletrônico do Município. “Tem que ser motivada, publicada no diário oficial e não ser transferida ao bel prazer da chefia dele. Eu tenho certeza que o prefeito não sabe disso, porque, se souber, ele vai voltar para o cargo.”
Borghetti também articulou sobre buscar os direitos do funcionário na justiça: “Acarreta em uma série de penalidades para a prefeitura, uma série de irregularidades, desvio de finalidade, usurpação de competência, não pode transferir ele sem ser publicado o motivo da transferência.”