A Universidade Pública: Nós nos tornamos não só que fazemos, mas como fazemos e porque fazemos!

Opinião
Guaíra, 1 de setembro de 2020 - 15h35

Penso que a Academia, a Universidade Pública está se tornando por demais ‘ensimesmada’ e ‘carrancuda’!

Tudo passa a ser feito em nome da ‘produção’ pela ‘produção’. É como se produzir fosse um fim em si mesmo.  Estamos perdendo o prazer, a alegria de produzir conhecimento, de fazer ciência, de filosofar, de historiar (…). Questiono se não estamos perdendo o prazer em atender as pessoas. Sinto que a perspectiva de que estamos colaborando para a construção de um mundo melhor, mais justo, mais humano, com ‘menos dor’ está se tornando secundária.

Pasmem! Quase não produzimos ‘arte’! Arte não como afago ao nosso ego, não para alimentar a fogueira das vaidades, mas arte como expressão do belo, como expressão humana; arte como forma contundente de crítica social; arte como arte! Sonho com uma Universidade da qual floresçam indivíduos, por exemplo, com a sensibilidade de uma Clarice Lispector ou a sabedoria humana e simples de uma Cora Coralina. Uma Universidade onde a ciência seja feita com ‘arte’ e a ‘arte com ciência’; de onde surjam, por exemplo, indivíduos com uma capacidade crítica e analítica de um Antônio Cândido, de um Florestan Fernandes, de um Bento Prado Jr, de um Milton Santos. De onde surjam indivíduos com a inquietude construtiva de um Darcy Ribeiro ou, com o rigor científico articulado ao humanismo de um César Ades, de um César Timo-Iaria e a grandeza e humildade de um Paulo Freire entre muitos outros não menos importantes. Mas, para que isso ocorra, é necessário não se abrigar em uma torre de marfim. Precisamos de uma Universidade ‘viva’ e, vivenciada com paixão, pois, “não há razão sem emoção”, conforme bem observado por António Damásio em O Erro de Descartes.

Creio que em uma Universidade o cultivar, o construir relações humanas saudáveis é fundamental. Entendo que ‘relações humanas’ saudáveis não pressupõe ausência de conflitos. Muito pelo contrário! Os conflitos são essenciais, desde que ocorram em um contexto de abertura, diálogo; de lealdade.

Concebo uma Universidade onde o termo ‘Democracia’ não continue sendo apenas, conforme originalmente concebido por Roscelino de Compiégne (século XI), ‘flatus vocis’ ou, em linguagem contemporânea, simples ‘palavras de ordem’, ou uma ‘democracia’ válida apenas para aqueles que ‘concordam conosco’, ao estilo do que disse o grande Ariano Suassuna: “A humanidade se divide em dois grupos, os que concordam comigo e os equivocados”.  Sei lá, mas quem se propõe a ‘pensar’ a Universidade deveriam, pelo menos, ler ou reler Os Intelectuais na Idade Média de Jacques Le Goff.

Devemos lutar por uma Universidade na qual a ‘hierarquia instituída’ não seja marcada por relações de poder, mas por ‘responsabilidade’ para com o outro e pela sensibilidade não só para ‘ver e ouvir’ os sinais, mas para ‘interpretar’, agir e interagir.

Não sou ingênuo a ponto de acreditar, no mundo contemporâneo, em uma Universidade na qual não exista burocracia. Mas, tenho convicção que, na Universidade, há ‘mentes’ capacitadas para pensar e repensar processos burocráticos e gerenciais inteligentes e menos opressores; capazes de     melhorar ‘fluxos e processos’ liberando tempo e energia e facilitando a ‘vida’ das pessoas.

Concebo uma Universidade na qual os princípios da gestão pública (Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência) sejam vistos, não como princípios que ‘engessam’ a gestão universitária, mas sim como princípios básicos para a garantia de que será cumprida a função social da Universidade e as Leis.  Tais princípios, se seguidos de forma intransigente, garantem o pagamento da ‘hipoteca social’ pela Universidade Pública  por meio da geração de conhecimento, prestação de serviços à comunidade  e desenvolvimento de novas tecnologias.  Tendo como perspectiva que conhecimento, serviço e tecnologia devem estar a serviço da emancipação e da libertação, temos     o grande desafio de contribuir diuturnamente para redução da miséria em todos os sentidos (econômica, cultural, educacional, etc.), mesmo porque defender ou ‘ensinar’ valores que não vivemos é hipocrisia, para não dizer ‘canalhice’.

Trabalhar em uma Universidade nesses moldes será extremamente exigente e exaustivo, mas capaz de gerar o sentimento forte e restaurador de contribuição para o pagamento da nossa hipoteca social. Creio que, quem trabalha em uma Universidade assim, vai se sentir ‘consumido’, mas, como uma ‘vela’ que se consome para oferecer ‘luz’ ao mundo.

Em síntese, defendo que uma “Universidade Pública, Gratuita e de Qualidade” pressupõe tudo aquilo que escrevi acima e muito mais.

Tenho consciência de que ‘vivemos tempos difíceis’ em função, por exemplo, da crise econômica e sanitária.  Vejo, apesar de produzirmos pesquisas de ponta e de prestarmos enormes serviços à sociedade, a Universidade Pública ser atacada todos os dias. Vejo as ciências, as artes a filosofia serem desvalorizadas. Sei que esse contexto marcado pela crise, pelos ataques e pela desvalorização leva ao sentimento de que, no mínimo, nossas perspectivas estão limitadas; de que ‘será’ difícil modificar o status quo. Mas, esse contexto difícil é animador! Sim, pois quando as dificuldades se mostram quase intransponíveis; quando os problemas se mostram insolúveis, os desafios se tornam apaixonantes. Não sou um idealista ou romântico. Para definir melhor o que sou, recorro novamente ao grande Ariano Suassuna: “Não sou nem otimista, nem pessimista. Os otimistas são ingênuos, e os pessimistas amargos. Sou um realista esperançoso. Sou um homem da esperança. Sei que é para um futuro muito longínquo. Sonho com o dia em que o sol de Deus vai espalhar justiça pelo mundo todo”.

 

Edvaldo Soares

Doutor em Neurociências

Professor do Departamento de Educação e Desenvolvimento Humano – DEPDH

Faculdade de Filosofia e Ciências – FFC – UNESP – Marília SP


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Laboratório de Neurociência Cognitiva – LaNeC

Unesp – Marília SP

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