Cidade Branca

Opinião
Guaíra, 29 de janeiro de 2017 - 11h35

 

Nem grafitada, nem cinza, tampouco com pichações que refletem cérebros corrompidos. Branca como é, ou como um dia será, a alma de todos seus moradores. Não só os espaços públicos. Também as casas dos industriários, dos comerciários, dos operadores dos serviços, dos médicos, advogados, jornalistas, empresários, políticos, prostitutas, proxenetas, estelionatários. Todos a demonstrar que somos todos amantes da paz, ainda que longínqua.

Lembrem-se dos “pueblos blancos” da Andaluzia e de seus intermináveis olivais, que não são latifúndios e não têm cerca, admirável contraste da natureza e compreensão entre os homens. Motoristas de táxi adquirem pedacinhos de plantações e não precisam cercá-los, todos respeitam o que é próprio e alheio, tudo é de todos nós. Para alguns mais, para outros menos, é a história da natural e insuperável diversidade do homem. Essa representação coletiva é o branco.

Se há algo transcendental, é a arte. Para uns, uma imagem de grafite, uma tela, um romance, um conto, um poema, crava-se profundamente em sua sensibilidade. Para outros nada diz. Se uma obra escrita nada lhe diz, deixe-a, dizia Borges. A arte só pode complementá-lo e fazê-lo mais humano, mais você mesmo e mais o outro. Leva-o, muitas vezes, a por as meias entre as botas e meter os pés no barro (Witman). Reversamente, pode deprimi-lo. Segue-se que a arte é a arte do observador. As garras apreensoras da razão e do sentimento de cada um é seu dono, não a produção ou o objeto em si. Sob tal aspecto parece-nos infértil contestar Kant, Schopenhauer e outros.

Somente o branco, diáfano, cria a cidade de todos, dos paulistanos de origem, paulistas, essa massa heroica de nordestinos, negros, imigrantes europeus, asiáticos. Se ainda não geramos o mínimo de igualdade econômica e justiça social, deixemos que nosso inconsciente coletivo, no mínimo, se guie por essa imagem primeva da igualdade e da paz.

O preenchimento dos espaços públicos por um artista grafiteiro, por mais genial que possa ser observado pela crítica, não é democrático. Um só observador, ou alguns, a quem as pinturas provoquem o nada ou o ruim, já justifica o argumento de desprestígio às liberdades democráticas. Ainda que se organize um concurso e os vencedores tenham redobradas razões para sê-lo, não há garantia alguma de que aqueles que, muitas vezes diariamente, passam por essas ruas, sejam amavelmente impressionados. Quadros que revelem a história da cidade não fariam mal, mas a reiteração diuturna dessa imagem face a nossas visões se tornam negativamente reiteradas. Melhor foram os painéis – não nos recordamos da gestão municipal – montados sobre nossa história na Praça da Sé – junto a um público imenso –  e nenhum vandalizado.

Não posso, você também, ninguém pode, ser obrigado a enxergar todos os dias o mesmo trabalho artístico. Não só nós não o suportamos, como se trata de uma injustiça, uma desigualdade relativa aos demais trabalhadores da arte. Imaginem uma escola que nos obrigasse a ler, todos os dias, um só poema. Ou ler partes de uma peça teatral de Shakespeare.  Para os que cruzam a Avenida 23 de maio às primeiras horas do dia, importa “Testemunhar a alvorada! A luz débil enfraquece a sombra diáfana e imensa, O ar tem um gosto bom para o meu paladar”. E os que retornam às suas casas exaustos das refregas, “Eu sou aquele que caminha com a noite que cresce brandamente, clamo à terra e ao mar, em parte abraçados pela noite” (Witman). Deixem-me fora da visão diária obrigatória, deixem-me usar meu chapéu como quero, dentro e fora de casa.

Politicamente corretos dizem tratar-se de higienismo, subrepticiamente nazismo. Derrapagem. A arte imposta a milhões é que carrega o vírus das ditaduras, como as produções manipuladas pelo Estado todo poderoso em nossa história recente.

Importa divulgar a cultura para todos e como um todo. A criação é boa ou ruim, não raro vem de subterrâneos divinos, da periferia, da zona leste, norte, oeste e sul, dos jardins que são jardins e dos jardins das profundezas de Santo Amaro.

Todos os muros da cidade merecem o branco. E todas as casas. Anualmente repintadas com o barato cal, que repele o calor, como naqueles “pueblos”. Não por leis de força, mas premiais. E a cidade plena de centros culturais de todas as espécies e professores da arte postos à disposição do povo. Se creio, ainda, em São Paulo, tais considerações são parte de minha crença.


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Amadeu Garrido

Amadeu Garrido – advogado e poeta. Autor do livro Universo Invisível, membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas.

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