A maldição de Sísifo

Opinião
Guaíra, 4 de maio de 2017 - 07h03

Por Gaudêncio Torquato

Não há como deixar de reconhecer: o produto nacional bruto da felicidade está muito escasso nessa quadra de crescentes demandas e imensos desafios. Demandas: melhores serviços públicos, a partir da saúde, da educação e da segurança; mais dinheiro no bolso e menos impostos; representação política mais compromissada com o cotidiano das pessoas; condutas éticas e morais compatíveis com os valores republicanos; equilíbrio entre os três Poderes, sem invasão de um nas competências de outro; menos espetáculo nas ações a cargo do Ministério Público e da Polícia Federal. Desafios: não gastar mais que se arrecada; reformar as relações de trabalho, fazendo predominar as convenções coletivas sobre a norma; garantir os recursos para pagar os aposentados de amanhã; criar um sistema tributário mais justo, capaz de harmonizar os interesses da União, dos Estados e Municípios; implantar novos métodos para a ação política, a partir de mudanças na modelagem eleitoral. Essa é a pauta que deve orientar o debate na frente institucional.

Analisemos alguns dessas situações. Nos últimos anos, a sociedade brasileira registrou melhoria nos índices que medem sua posição nos espaços da pirâmide. Desde o Plano Real, dos tempos de FHC, a carga de redistribuição colaborou para diminuir o imenso fosso que separa os territórios dos ricos dos bolsões dos miseráveis. Na era Lula, houve considerável salto de parte da classe C, que saiu das margens para ocupar o primeiro andar do centro da pirâmide. A inserção dos famintos na cadeia alimentar foi um extraordinário fato. Mas a derrocada que se viu a partir do ciclo comandado por Dilma Rousseff pôs tudo a perder.

Por isso mesmo, o brasileiro está insatisfeito com as coisas. De um lado, dá as costas à política, indignado com o tsunami de corrupção. Quer um fiador da estabilidade econômica. Enquanto essa não aparece, as loas são despejadas no Judiciário, onde um juiz de primeira instância, Sérgio Moro, é entronizado como herói.

A vida é um eterno recomeço – Fosse escolher a lenda mitológica que mais se assemelha à sua vida, provavelmente o povo brasileiro colocaria a história do castigo de Sísifo entre as preferidas. Sísifo, que viveu vida solerte e audaciosa, conseguiu livrar-se da morte por duas vezes, sempre blefando. Rei de Corinto, não cumpria a palavra empenhada, até que Tânatos veio buscá-lo em definitivo. Como castigo, os deuses o condenaram impiedosamente a levar montanha acima um grande bloco de pedra. Quase chegando ao cume, o bloco desaba montanha abaixo. A maldição de Sísifo é recomeçar tudo de novo, tarefa que há de perdurar pela eternidade.

O povo brasileiro se sente em estado de eterno recomeço. Quando acha que as coisas estão se normalizando, o desastre aparece. Essa é a razão pela qual o cidadão se vê numa ilha ameaçada constantemente por pequenas e grandes catástrofes, escândalos, corrupção desbragada etc.

Ora, que amor à Pátria pode existir em espíritos tomados pela indignação, pela violência que se expande nas grandes e médias cidades, pelos assaltos que infestam as ruas centrais e periféricas, pelo rebaixamento dos valores morais, pelas negociatas que corrompem as veias do Estado? Que espírito público pode vingar no seio das massas quando partidos políticos dividem espaços de poder, de forma egocêntrica e ignominiosa?

Emigrar tem sido a opção de muitos brasileiros que já não suportam viver na quadra mais recessiva de nossa história. Muitos fogem após o bom ciclo da estabilidade econômica conquistada nos tempos do Plano Real e desperdiçados pela era petista. A instabilidade deixa, hoje, 13,5 milhões de brasileiros sem emprego. Os consumidores fazem suas continhas moeda a moeda para saber  quanto dinheiro  terão no início e no final de cada mês. Nesse contexto, não haverá saída ao país se não fizermos as reformas necessárias ao resgate da economia. Sem elas, não haverá estabilidade monetária. O sonho de recuperar o antigo bem-estar ameaça não se concretizar.

Mudanças – O povo sente na carne os efeitos perversos da economia desorganizada. Daí seu clamor por mudanças profundas na política. O cidadão quer dar um basta à corrupção, à política que favorece apenas grupos e famílias tradicionais. A micropolítica, a política do distrito, do bairro, da região, passa a ser mais importante que a macropolítica das propostas monumentais. Chega de oba-oba, esse é o sentimento que se expande pelo território. As pessoas estão mais conscientes. Racionais. A informação chega ao último dos habitantes, levada pelo poder de capilarização da mídia. O conhecimento sobre as realidades ganha dimensão global. Até os índios saem de suas cabanas para reivindicar trator, assistência técnica, grãos, ou seja, querem melhoria em suas vidas.

A crítica sobre o desempenho dos governantes torna-se aguda. Observa-se, aqui e acolá, o fato de governos jogarem bilhões no lixo por fazerem obras sem importância social. Clama-se por prioridades. Cresce o número de reclamações, explodem as denúncias sobre negligências, malhas de corrupção, jogos de interesses. Na área da saúde, o retrato do caos continua chamando a atenção.  A escalada de mortes aumenta na teia deteriorada do sistema hospitalar. O sistema previdenciário está à beira da falência.

Urge cortar os laços com os galhos podres do passado patrimonialista e construir as vigas do futuro. Urge reformar a Previdência para a garantia de um horizonte menos perturbador para os aposentados. Urge um choque de gestão na máquina pública. Urge implantar a meritocracia como eixo da gestão.

A reforma da estrutura estatal, nas três instâncias da Federação, torna-se um imperativo. A tão propalada reforma do Estado deve sair do papel. A base das mudanças se ancora na educação. A reforma educacional é absolutamente indispensável e urgente. O analfabetismo na população acima de 15 anos ultrapassa os 15%.

No mais, os cidadãos brasileiros querem ter um Estado protetor e não viver sob o manto de um Estado paquidérmico e usurpador.

Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato

 

 


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