Há uma pendenga entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário que teima em não dar trégua. O último lance dessa continuada batalha foi a incursão da Câmara Federal no terreno do Tribunal Superior Eleitoral, com a colocação na pauta de um projeto proibindo aquela Corte de punir partidos que não apresentem prestação de contas ou que tenham suas contas rejeitadas. Foi preciso uma cirúrgica intervenção do presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes, para convencer o presidente da Câmara a eliminar essa disposição, que acabaria estiolando a força do Tribunal.
A primeira leitura que se faz do episódio é a de que o Parlamento quer dar um troco aos juízes eleitorais ante a crescente invasão do Judiciário em sua seara. A queixa se arrasta há muito tempo: o Poder Judiciário está legislando e invade a propriedade exclusiva dos representantes eleitos, deputados e senadores. O fato é que os juízes, a partir dos integrantes de nossa mais alta Corte, o STF, passaram a ditar leis. O argumento é de que os legisladores, para preservarem os princípios da harmonia e da independência entre os Poderes, estatuídos na Carta Magna, não fazem a lição de casa. Não estão tampando espaços abertos pela Constituição de 88, deixando vazios na legislação infraconstitucional. Como o poder não admite vácuo, a Corte o tem preenchido com farta legislação judicial.
JUÍZES LEGISLANDO – Nesse ponto, convém indagar: o STF deve entrar no terreno legislativo ou só informar às Casas congressuais sobre suas omissões? O Supremo, como se sabe, só age quando acionado. Sua missão precípua é interpretar a Constituição ante a falta de clareza ou inexistência de leis que detalhem normas sobre os mais diversos assuntos de interesse social. Mas algo mudou. Os magistrados, de comportamento cauteloso no passado, passaram a produzir regras. Sob o empuxo de demandas sociais, o Supremo tem se reposicionado no cenário institucional, tomando decisões de impacto, sem se incomodar com críticas de que está legislando. Querelas políticas também reforçam a atividade legislativa do Judiciário, bastando ver o recurso de partidos de oposição, que questionam, por exemplo, a hipótese de reeleição de Rodrigo Maia à presidência da Câmara, exemplo mais recente.
Por que os parlamentares, tão afeitos à produção legislativa, deixam de fora de sua agenda a regulamentação de dispositivos importantes da Constituição? Seria por falta de consenso? O fato é que um sem número de dispositivos que precisam de regulamentação, atribuição que acaba de ser conferida à Comissão mista do Congresso Nacional, composta por 11 senadores e 11 e deputados. Há, segundo cálculos da Casa Civil da Presidência da República, cerca de 180 mil diplomas normativos na esfera federal, entre leis, decretos-leis, decretos, portarias, resoluções e instruções normativas, muitos conflitando com a própria Constituição.
Ante o arsenal de dispositivos não regulamentados, emerge a legislação judicial. Não estaria havendo transgressão ao princípio democrático de que o representante eleito pelo povo é quem detém o poder de legislar?
FORA DOS AUTOS – Outra queixa recorrente é a de que os juízes, nesses tempos de grandes operações envolvendo corrupção, passaram a falar fora dos autos. Isso é possível? Quando isso ocorre não estaria o juiz cometendo pré-julgamento? Vejamos o que explica a ciência política. Pela visão aristotélica, o Judiciário cumpre uma função política. O Poder Judiciário seria detentor da cota de política que Aristóteles atribuía ao homem, cujo dever é participar da vida de uma cidade, “sob pena de se transformar em ser vil”. Pela interpretação do ensinamento do filósofo grego, não haveria restrição para ver na missão dos juízes uma faceta política. Mas essa não parece ser a questão. O que se critica é o fato de o ente político, a serviço da coletividade, se confundir com o politiqueiro. Naquele habitaria a grandeza, neste residiria a vilania. A premissa joga alguns membros do Poder Judiciário no buraco da politicalha, o que seria maneira enviesada de ler Aristóteles. Ou seja, a Política com P maiúsculo é apequenada e jogada no poço da politicagem.
Esta é a encruzilhada com que se defronta o Poder Judiciário e provoca tensões entre os Poderes. Daí a imagem deteriorada que se tem dos Poderes. A descrença se generaliza. Sob o aspecto atitudinal, constata-se verbalização fecunda de uns e outros, que acabam sendo identificados como simpatizantes de partidos. Urge lembrar que nos Estados Unidos, os membros da Suprema Corte são intensamente identificados com os partidos republicano e democrata. A disputa pelo controle da Casa Branca e do Congresso entre os dois partidos se estende na composição da Suprema Corte. Daí a escolha de nomes com os quais os representantes do Executivo e do Legislativo sintam-se mais identificados e seguros em defesa de seus interesses políticos.
Entre nós, causa estranheza a desenvoltura com que altos magistrados se relacionam com o mundo partidário. É elogiável o esforço de uns para abrir fluxos de comunicação com a sociedade. Quando, porém, a expressão da alta administração da Justiça se transforma em negociação de bastidores, a imagem do Judiciário se estilhaça. O maior patrimônio de um juiz é a independência. Essa é a ferramenta para galgar as fronteiras da democracia substantiva, seara onde deve julgar, conforme a consciência, indo até contra a vontade de maiorias, defendendo direitos fundamentais, não se curvando às pressões midiáticas nem às correntes de opinião.
O Estado-Espetáculo é outro componente que acaba desvirtuando a missão do juiz. Alguns quadros do Judiciário, e também do Ministério Público, apreciam contemplar o espelho de Narciso, admirando-se e jogando confetes em direção aos holofotes da mídia. Não se pretende defender a tese de que juiz precisa vestir o figurino da neutralidade. Juízes insípidos, inodoros e insossos tendem a ser os piores. O que se pretende é voltar a encontrar no Judiciário as virtudes que tanto enobrecem a magistratura: independência, saber jurídico, honestidade, coragem e capacidade de enxergar o ideal coletivo.