“E quantos segredos não foram guardados nessa maloca? Flutuar no céu poluído da cidade e beber toda sua mentira. Esperança mingua, torneira sem água(…)” CRIOLO – Música: Casa de papelão, álbum Convoque seu Buda (2014)
No último dia oito de novembro comemoramos o dia mundial do Urbanismo, data declarada pela Organização das Nações Unidas (ONU)com o intuito de promover a consciência, a sustentabilidade, a promoção e a integração entre a comunidade e o urbanismo.
Diante dessa data, é difícil não refletirmos e questionarmos: a qualidade do desenho espacial das nossas cidades corresponde à estrutura ética que se espera delas? As crises ambientais, os conflitos relacionados ao acesso aos bens e serviços urbanos, o abismo social na fruição de equipamentos urbanos escancara uma estrutura insensível e antiética? Qual o papel do Ministério Público na indução de políticas públicas de uma cidade mais ética?
O tema ética urbano foi o foco, no ano de 2000, da 7ª Bienal de Arquitetura, em Veneza na Itália, com o tema: “less aesthetics more ethics”. O questionamento central colocado pela curadoria representa um anseio que já década de 1990 se mostrava presente no Brasil, “a década de 1990 foi selecionada como o fim de um período na história do planejamento urbano brasileiro porque marca o início do seu processo de politização. fruto do avanço da consciência e organização populares. (…) A população está cansada de saber quais são os seus problemas”.
Assim, um desenho espacial mais ético das cidades, principalmente dos grandes centros urbanos, passou a ser uma demanda crescente da população e de grupos da sociedade civil organizada.
É diante dessa demanda, de um planejamento urbano mais ético, que se inserem a Constituição Federal, o Estatuto da Cidade e o próprio papel do Ministério Público na defesa do meio ambiente natural e artificial.
A Constituição Federal estabelece como um dos objetivos da República a redução das desigualdades sociais tendo como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. Partindo desses vetores principiológicos é que devemos densificar o comando do seu art. 182, que nos determina um planejamento urbano que respeite a função social da cidade e garanta o bem-estar de seus habitantes
Função social essa que só se efetivará se as cidades forem sustentáveis, possuírem uma gestão democrática por meio da participação popular e ofertarem equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população às características locais, como bem estabelece o Estatuto da Cidade.
Normas que inquestionavelmente representam uma conquista da sociedade brasileira, mas nos demonstram a existência de um Brasil de fato e um Brasil de direito.
E é justamente nesse de Brasil de fato, diante de uma estrutura urbana insensível e antiética, que a figura do Promotor de Justiça, que tem por dever zelar pelos serviços de relevância pública e os direitos assegurados na Constituição, atuará Saneamento básico, num país em que apenas 43% da população tem acesso à coleta e ao tratamento do esgoto domiciliar[v]; água potável em todas as residências, no Brasil 35 milhões de pessoas não têm acesso ao abastecimento de água tratada; acesso à moradia, em face de um déficit habitacional superior a 7.79 milhões de residências; e transporte público de qualidade, numa nação em que apenas 6,4% de municípios possuem conselhos municipais de transporte, são alguns dos direitos assegurados e não efetivados que transformam as nossas cidades em estruturas antiéticas e insensíveis.
Insensibilidade que sai do campo da omissão para a ação, transmitida em política pública, quando transformam equipamentos urbanos em instrumentos de segregação como a colocação nos baixios de viadutos com o nítido intuito, numa arquitetura ou cidade hostil, de violar gravemente os direitos fundamentais justamente daqueles que nada tem, privilegiando a estética em face da ética.
Falar e exigir ética e sensibilidade do desenho urbano é atuar no cumprimento do dever constitucional do Ministério Público, ciente do seu grande papel, como dito acima, de zelar pelos serviços públicos assegurados à população.
Bem-estar nas cidades é direito constitucional e sua concretização deve ser fiscalizada pelo Ministério Público e compreendida pelos gestores como política pública.
Como o palco da vida da grande maioria dos brasileiros, 84,72%, o nosso olhar sobre as cidades deve ser mais inclusivo, como anuncia o nosso Brasil de direito, mas, ainda, apartado do nosso Brasil de fato.
Como bem nos ensinou o Professor Arquiteto e Urbanista Paulo Mendes da Rocha: “o projeto ideal não existe, a cada projeto existe a oportunidade de realizar uma aproximação”. A aproximação que esperamos é a aproximação das pessoas, num desenho urbano mais inclusivo, que possamos usufruir de uma cidade com menos mentiras, materializadas nas desigualdades e na insensibilidade, e que não seja míngua a esperança de água nas suas torneiras; uma cidade mais ética.
Paulo Henrique Carvalho Prado, promotor de Justiça no Estado de Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Mackenzie. Especialista em Processo Civil pela Universidade de São Paulo. Associado ao MPD – Movimento do Ministério Público Democrático.
Texto publicado https://mpd.org.br/mpd-no-estadao-a-etica-urbana-e-o-ministerio-publico/