Avulsos e a democracia representativa

Opinião
Guaíra, 8 de outubro de 2017 - 10h24

A Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, em parecer encaminhado ao STF, sustenta a possibilidade de candidaturas avulsas no país, tendo se apoiado no Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), firmado em 1969, e ratificado pelo Brasil em 1992. Ali se diz que todos os cidadãos podem votar e ser eleitos e, por conseguinte, disputar em condições de igualdade funções públicas no seu país. Sob a égide dos direitos humanos, a tese é claramente plausível. Mas a questão deve ser analisada também sob a perspectiva da democracia, que tem nos partidos políticos um dos eixos centrais.

Na acepção do termo, partido é parte, e, como tal, corresponde à parcela do pensamento social. Portanto, o conjunto de partidos, em sua totalidade, representa os conjuntos sociais. E o candidato avulso? Se os escopos doutrinários inseridos no arco ideológico (da direita à esquerda) são repartidos entre os partidos, como ele, avulso, pode se apresentar? E a quem representará?

A possibilidade de uma candidatura avulsa pode ser entendida no contexto da crise que se abate sobre a democracia representativa, que ganhou força nas últimas décadas com a despolitização ou, ainda, a desideologização. Nas últimas três décadas, temos presenciado não apenas o declínio das ideologias, mas o arrefecimento dos partidos, particularmente os partidos de massa, que se desenvolveram sob o fluxo da industrialização e do fortalecimento da classe operária.

MECANISMOS CLÁSSICOS DA POLÍTICA – A sociedade industrial e a expansão econômica minaram os fundamentos da luta de classes, amortecendo a força dos mecanismos clássicos da política, entre eles, doutrinas, partidos e bases, e, mais do que isso, contribuindo para a formação de novas formas de representação, como movimentos, enfim, entidades organizadas. Os partidos políticos, perdendo identidade e não mais correspondendo às condições políticas, sociais e econômicas da atualidade, tornaram-se, na expressão do estudioso alemão Otto Kirchheimer, catch-all parties( partidos de agarra tudo). Grupos de pressão passaram a substituir partidos por novos polos de poder, enquanto a democracia representativa transferiu parcela de sua força para uma “democracia supletiva”, fenômeno constatado na França no final dos anos 60, por ocasião da IV Legislatura (época do primeiro ministro Chaban-Delmas).

Sob essa moldura, ao lado de fenômenos como o cidadanismo, os novos circuitos de representação, a micropolítica, emerge a tendência de personalização do poder, que se concretiza na vida de personagens que assumem a identidade de “salvadores da Pátria” ou de figuras ímpares do círculo de negócios. Ante o descalabro da política, e com a sociedade de costas para a esfera representativa, surgem aqui e ali quadros que concentram as atenções de grupos populacionais.

Emanoel Macron apareceu na cena eleitoral da Franca como candidato independente.  Fundou o Movimento Em Frente nos moldes de uma start-up, mobilizando contingente imenso de militantes. Da mesma forma, Yuriko Koije, mesmo pertencendo ao Partido Liberal Democrático, apresentou-se como independente para se eleger governadora de Tóquio. Constata-se por todo planeta propensão das bases eleitorais em deixar o tradicional abrigo partidário, até em virtude da falta de compromissos de partidos e de promessas não cumpridas, e se abrigar na sombra de pessoas que expressem ideia de renovação, assepsia, esperança de melhoria de vida do povo.

QUESTÕES OPERACIONAIS – Candidatos avulsos representam mais um fator de desestabilização da já combalida democracia representativa. Ao não integrarem os corpos partidários, contribuirão para o esfacelamento e perda de poder das siglas. É inimaginável pensar em candidato sem doutrina, sem programa, sem lição de casa a apresentar ao eleitorado. Imaginemos, portanto, que levantarão bandeiras e assumirão compromissos. Se seu ideario for semelhante ao de partidos com tradição? Como se apresentarão ao eleitorado? Se o programa apresentado ganhar o entusiasmo de eleitores, estará neles o germe de uma agremiação, na medida em que o elo de integração de conjuntos sociais será o engajamento a ideias. Ninguém oferecerá seu voto a um candidato avulso apenas por sua estampa, seu sorriso ou maneira de falar. Esse tipo de voto até pode ser dado, principalmente por estratos periféricos. Mas não vingará no tempo.

Há outras questões de natureza operacional: como os avulsos entrarão na partilha de recursos partidários para as campanhas? De pronto,  infere-se que as candidaturas avulsas serão acolhidas com mais fervor por figuras de maior calibragem financeira. Ricos, afamados ou perfis com alta exposição midiática liderarão o ranking de visibilidade, elemento fundamental nos pleitos. Mesmo que tenham a visibilidade controlada no período eleitoral, ganharão um bom recall (lembrança) decorrente de sua vida profissional, como, aliás, é o que ocorre hoje com esportistas, quadros da TV e do rádio etc.

Não há como garantir que os candidatos avulsos levarão para o universo da política denso grau de inovação. Que inovação? Inovação por se apresentarem como caras novas? Inovação por não se abrigarem em partidos? Inovar, renovar ou reformar significa alterar formas, métodos, processos, atitudes políticas. Para tanto, terão de preparar cuidadoso discurso. Se a proposta se apresentar inviável, por absurdos que contiver, será rejeitada pelo eleitor. Que está votando mais com a cabeça e menos com o coração. Não se pense que a racionalidade que se expande no sistema cognitivo do eleitorado se voltará apenas para a aparência ou desenhos costurados com a agulha do marketing. Ou porque são candidatos avulsos. E mais: os bolsões periféricos, principalmente os mais carentes, continuarão a dar um voto de gratidão, pela obra intermediada pelo político da região.

A presumida independência de candidatos avulsos pode ser um tiro n’água.


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Gaudêncio Torquato

Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação

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