O combate ao poder invisível

Opinião
Guaíra, 27 de agosto de 2017 - 09h21

Parcela considerável do contencioso que cerca a crise que afunda o país gira em torno das relações promíscuas entre a gestão pública, os políticos e os círculos de negócios. Esse é o triângulo que sustenta os bolsões de corrupção que têm se alastrado nos subterrâneos do Estado, aqui e alhures, bastando ver o que também ocorre em outros países de feição democrática. É o que também descreve Roger-Gerard Schwartzenberg no clássico Sociologia Política, no capítulo em que trata da tecnodemocracia. Ao se considerar que a res publica sempre despertará a atenção dos agentes negociais, ante a inexorável tendência de conjunção de interesses dos universos público e privado, resta imaginar uma forma capaz de dar plena transparência às relações entre o Estado e seus prestadores de serviços.

Nessa complexa teia de relacionamentos, emerge o fenômeno do lobby. Há um projeto em tramitação no Congresso que trata dessa matéria tão estigmatizada. Pois o lobby carrega forte conotação negativa no ambiente político, sendo associado à corrupção, tráfico de influência, manipulação das estruturas governativas, enfim, apropriação de fatias do Estado pelas forças que usam as armas do patrimonialismo, mazela de nossa administração pública. (A Operação Lava Jato está eivada de exemplos com essa conotação). Daí a necessidade de abrir a redoma em que se esconde o lobby.

Democracia Participativa – Pincemos a lição de Bobbio: a democracia é o governo do poder público em público, jogo de palavras que aponta para a ideia de “manifestação, evidência, visibilidade”, em contraposição à coisa “confinada, escondida, secreta”. O filósofo arremata: “Onde existe o poder secreto há, também, um antipoder igualmente secreto ou sob a forma de conjuras, complôs, tramóias.” Donde se conclui que não resta outro caminho que o de inserir a atividade lobística na esfera dos canais da democracia participativa.

Vejamos. A intermediação de interesses privados junto à esfera pública não é um fenômeno contemporâneo. Faz-se presente em todos os ciclos históricos, frequentando, inclusive, os primeiros dicionários da política. Rousseau, no Contrato Social, perorava sobre a oportunidade de cada cidadão participar nos rumos políticos, garantindo haver “inter-relação contínua” do “trabalho das instituições” com as “qualidades psicológicas dos indivíduos que interagem em seu interior”.

Esse é o fundamento da democracia participativa, pela qual os cidadãos e suas representações devem ser livres de coerção para influir de maneira autônoma no processo decisório. De certa forma, o lobby bebe nessa fonte. O ideário começou a ser conspurcado, à sombra do poder invisível que age nos subterrâneos do Estado e que forma uma teia de interesses espúrios e alianças táticas com máfias, grupos e castas que se alimentam da corrupção. O Estado moral, nesse momento, soçobra diante do Estado imoral.

Agindo nos subterrâneos – O rompimento dos diques éticos acentuou-se por conta da desintegração das fronteiras ideológicas, características da política na sociedade pós-industrial. A administração de coisas materiais tomou o lugar de um governo voltado para a defesa da coletividade. O cerco utilitarista em torno do Estado se expandiu, agora sob um triângulo de poder: partidos amorfos, burocracia administrativa e núcleos de negócios.

Desvirtuando-se do ideário original, os lobbies se tornaram sinônimo de interesses escusos. Em nossa história recente, plasmaram monstrengos e expuseram escândalos, como mensalão e petrolão. Ao lado de desvios constata-se saudável movimentação da sociedade.  A Constituição de 88 foi o ponto de partida para um novo ordenamento. Multiplicaram-se entidades. O respiro social propiciou a expansão de novos centros de poder, cuja ação se fez ver em novos nichos temáticos.  Parcela ponderável dessa agenda bateu nos Tribunais, chegando à Suprema Corte, que tem decidido sobre matérias polêmicas, como as questões da união homoafetiva, cotas raciais, células-tronco, mensalão, proibição de financiamento privado de campanhas, prisão depois do julgamento em segunda instância.

O arrefecimento dos partidos políticos, na esteira da alienação ideológica, jogou milhares de cidadãos ao abrigo de entidades como  sindicatos, associações, clubes etc. Águas limpas se cruzaram com torrentes de águas sujas. Diferentes tipos de interesse se confundem e conflitam no epicentro das pressões e contrapressões, onde se abrigam as cúpulas do Congresso Nacional, o Palácio do Planalto, os Ministérios, as autarquias e as sedes das Cortes do Judiciário.

A atividade de lobby passou a atuar forte naquelas esferas, com a ajuda de grupos incrustados na máquina administrativa por indicação de partidos da base aliada. Até áreas laborais entraram no jogo, como centrais sindicais que manobram rédeas das relações de trabalho. (O combate à Lei da reforma trabalhista é um exemplo da pressão corporativista). A meta é manter o status quo.

Daí a necessidade de legalizar o lobby nos moldes praticados nos Estados Unidos. Urge abrir por completo as estruturas, dar-lhes transparência. Os lobistas terão nome, endereço e dirão a quem estão servindo. Desenvolverão uma articulação aberta, escancarando modos de atuação, identificando grupos e coletividades representadas e a natureza dos interesses envolvidos. O marco regulatório sobre a intermediação de interesses grupais e coletivos junto às esferas da administração pública virá, portanto, formalizar uma prática hoje informal.

Veremos diminuída a taxa de corrupção, na medida em que será desvendado o que está por trás das máscaras dos interlocutores. Demandas gerais, difusas, particulares, explícitas ou latentes, passarão pela lupa da mídia. A publicidade das ações propiciará distinguir o justo do injusto, o lícito do ilícito, o correto do incorreto, o oportuno do inoportuno, gato de lebre.

Dessa forma, a democracia estará mais próxima do seu real significado: o regime do poder visível.


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Gaudêncio Torquato

Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação

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